Suas mãos ainda
tremiam de nervoso e, por entre as veias que estavam expostas à pele, pulsando
intensamente, ainda escorria um fio de sangue que formava uma pequena possa
vermelha no chão escuro de carvalho envelhecido.
Aquela sala,
aquela janela, aquele céu azul. Cenário que Amélia já vira tantas vezes e
estava acostumada, assim como estava acostumada à dor que consumia seu peito.
Havia noites em que ela passava o tempo todo acordada, ouvindo a respiração e o
ronco das outras garotas; aquela dor não a deixava dormir.
Em breve estarei longe daqui, ela
pensava, e quando eu for embora desse
lugar, vou sair sem olhar pra trás. Vou dar de ombros, dar à costa e ir pra jamais
retornar. Amélia fechou os olhos e se imaginou livre. Uma brisa entrou pela
janela e balançou seus cachos negros enquanto ela, ainda de olhos serrados, se
via pra fora daqueles muros, daquela vida.
Será que lá fora
ela ainda sentiria todo o desprezo? Será que ela ainda se perguntaria por quê?
Será que a dor ainda a acompanharia? Amélia abriu os olhos e, por um leve
instante, temeu; talvez ela jamais fosse livre da dor; talvez ela teria que
viver com aquele incômodo no peito para sempre; talvez os muros que a
prendessem não fossem feitos de tijolos e cimento. Amélia temeu.
Foi então que a
porta bateu atrás de si, assustando a jovem. E os passos firmes de Rute ecoaram
por toda a sala até que a diretora se sentasse na cadeira atrás da mesa. Rute fitou-a
por um instante e depois voltou o olhar para o alto. A decepção falou alto em
seu gesto, e ninguém podia entender porque aquela mulher ainda esperava uma
atitude nobre de alguém como Amélia, talvez nem ela mesma.
Rute estendeu o
braço entregando um lenço e fez um sinal insinuando que Amélia deveria limpar a
mão ensanguentada com aquilo. No lenço as letras “R”, “C” e “A” bordadas em
amarelo ouro indicavam as iniciais de Rute Cintra de Alcântara, uma mulher doce
e de família conhecida que jamais casara, talvez por esperar demais de pessoas
que não tinham nada a oferecer, como Amélia.
A jovem limpou o
sangue ainda em silêncio, mas em sua mente tinha a convicção de que não ouviria
sermão daquela vez. Já bastava! Ela estava prestes a alcançar a maior idade e
não permitira que ninguém mais dissesse o que era e o que não era para ela
fazer. Ela já seria dona de si e faria tudo de acordo com a sua própria cabeça.
- Acho que seria
interessante você saber que ela está bem. Graças a Deus o seu nariz não está
quebrado, ele tinha apenas se deslocado.
- Ela teve o que
mereceu – Amélia encarou-a – ela me provocou. O que você queria, que eu ficasse
e silêncio?
- O silêncio, as
vezes, é uma ótima forma de se evitar problemas.
Amélia
levantou-se, jogando o lenço sobre a mesa.
- Então por que
você não faz isso? Porque eu estou cansada de escutar sermão e não to afim de
escutar outro.
Ela ia
virando-se, quando Rute interrompeu-a.
- Não me
interessa se você está afim ou não, você vai sentar-se nessa cadeira novamente
e vai ouvir tudo o que eu tenho pra te falar!
- Escuta aqui – Amélia
virou-se – eu não admito que você fale assim comigo. Daqui uns dias eu serei
uma adulta e...
- Exatamente – Rute
gritou, levantando-se também – se você vai ser uma adulta você precisa começar
a encarar as consequências das suas atitudes como um adulto faz, então senta aí
agora.
Amélia sentou-se
e Rute respirou fundo, ficando em silêncio por alguns segundos. Ela, então,
tomou o porta-retrato que matinha sobre a mesa e, fitando intensamente a fotografia
que tinha ali, de quando era ainda adolescente e ao lado dos pais, ela disse:
- Quando eu
montei essa Casa, Amélia, eu queria que todas as crianças órfãs pudessem ter o
que eu tive: um lugar para serem amadas, respeitadas, felizes. Nem todos têm o
privilégio de ter pais tão maravilhosos quanto eu tive – Rute devolveu o porta
retratos ao seu lugar e olhou nos olhos de Amélia – Mas você faz tudo ser tão
mais difícil, e eu sinceramente não te entendo. Daqui uns dias você vai sair
pelos portões desta instituição e não vai poder voltar pra cá, e eu me
pergunto: o que você vai fazer da vida, Amélia? Onde você vai morar? Vai viver do
que? Todos os lugares onde nós te mandamos para trabalhar, você deu problema...
- Eu?! – Amélia
disse, levantando-se – ninguém me aceitava, eu fiz de tudo...
- Você sabe
muito bem dos problemas que você causou, e senta aí de novo.
Amélia
sentou-se, cruzando os braços.
- Olha, eu sinto
muito, mas eu não tenho culpa. Eu não tenho culpa se sua mãe te abandonou e te
deu às costas.
- Ela não fez
isso!
- Ela fez, Amélia,
você sabe que ela fez...
- Ela JAMAIS
faria algo assim – a moça disse, com os olhos já marejados.
- Amélia, você
sabe que ela já fez, você sabe que ninguém veio te deixar aqui prometendo
voltar, nós te encontramos abandonada entre caixas e sacos de lixo, você sabe
disso – Rute falava aos prantos, enquanto Amélia desviava o olhar e deixava as
lágrimas correrem pelo seu rosto jovem – mas você precisa encarar a realidade,
perdoar seu passado e viver em paz, porque eu não tenho culpa. Eu não tenho
culpa de você ter sido abandonada, não tenho culpa de você ter sido devolvida
por aquela família quando você tinha sete anos, eu sinto muito, realmente
sinto, mas não tenho culpa, nem seus antigos patrões, nem a garota que você
espancou no pátio. Nós não temos culpa!
- EU SEI – Amélia
gritou, chorando – eu sei, eu sei, eu sei... eu sei que a culpa é minha, que eu
sou tão miserável que não sou digna que ninguém me ame.
Rute deu a volta
na mesa e abraçou a moça.
-Mas é claro que
não, minha querida, a culpa não é sua também pelo que lhe aconteceu, nem pelo
que lhe fizeram. Não temos culpa pelo que fazem a nós, temos pela maneira como
reagimos a tudo o que nos acontece.
Rute ficou
abraçada à Amélia por alguns minutos, esperando que a moça se acalmasse. Amélia
recuperou seu fôlego, enxugou as lágrimas e soltou-se da diretora, com o olhar
cabisbaixo. Rute levantou a cabeça da moça, tomou suas mãos e olhou em seus
olhos.
- Eu quero que
você saia, vá dar uma volta... o dia está lindo hoje. E então, quando você
voltar, quero que você volte disposta a consertar seus erros e ser feliz.
Ninguém precisa viver presa ao passado, Amélia, esse fardo não lhe cabe mais. Tudo
bem? – Rute sorriu.
Amélia consentiu
com a cabeça, e a diretora saiu, deixando a porta aberta. Amélia olhou
novamente para o céu azul atrás da janela e sentiu uma leve brisa soprar. Ela
então saiu, fechando a porta atrás de si.
***
“Assim diz o
Senhor, aquele que fez um caminho pelo mar, uma vereda pelas águas violentas, que
fez saírem juntos os carros e cavalos, o exército e seus reforços, e eles jazem
ali, para nunca mais se levantarem, exterminados, apagados como um pavio: ‘Esqueçam
o que se foi; não vivam no passado’.” Isaías 43:16-18
Um forte e longo abraço.Te espero
aqui no próximo post!
Deus te abençoe
Denian Martini, o cronista.
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