Naquela mesma manhã


A manhã ainda nem havia começado de verdade, e ela já corria de mesa em mesa, transportando papéis, fazendo anotações, arrumando o ambiente que estava bagunçado e colocando todas as coisas em ordem. Eram pilhas e pilhas de papéis a serem guardados nos armários, pastas a serem organizadas e lembretes a serem entregues.

Em meio a todo esse cenário, o telefone não parava de tocar, mesmo sendo o horário que era. Nunca o telefone tocava mais que duas vezes, muito prestativa, ela sempre atendia no momento certo e não deixava que ninguém ficasse esperando muito tempo na linha até que a ligação fosse atendida.

O relógio marcava uma hora nada convidativa, e ela sabia muito bem disso. Não demoraria muito para que todos começassem a chegar e, então, o até agora silencioso ambiente que só emitia os ruídos que ela mesma causava, passaria a ser barulhento e mais conturbado do que já estava sendo.

Ela se apressou mais ainda, mas havia muitas pastas sobre a mesa, e mais papéis ainda espalhados, que precisariam ser agrupados de acordo com a ordem certa, grampeados, guardados nas pastas certas para que, então, as pastas fossem guardadas nos lugares certos dos armários.

Geralmente, esse era um serviço que era feito em conjunto com as outras mulheres que também trabalhavam ali, mas naquela manhã ela entrara mais cedo, para poder sair mais cedo e aproveitar a noite que prometia ser muito boa. Apenas ela e o marido, algo que não faziam há muito tempo.

Enquanto pensava em tudo isso, as mãos não paravam. Já começava a ouvir as primeiras crianças chegando. Muitas delas eram deixadas lá pelos pais logo de manhã, antes das aulas começarem, e aguardavam no pátio até que o sinal soasse. Mas ainda era muito cedo pra isso, tão cedo que nem mesmo o pão com margarina e o leite, que era dado todas as manhãs, estava pronto.

Por um instante ela decidiu parar um pouco, foi à frente da janela, de onde podia ver quase todo o pátio; e lá estava ele. Era tão pequeno, e bonito, e lhe ensinara grandes coisas. Sentado no banco, seus pés não alcançavam o chão, e ele os balançava, como uma criança inocente e feliz que era.

Observando o menino, ela lembrou-se daquela manhã que ele a vira chorar. Mesmo com toda a discrição, ela não pôde esconder-se do pequeno garoto que vira as lágrimas rolarem em seu rosto. Envergonhada, ela sorriu pra ele. No outro dia, ele lhe entregara uma flor e lhe disse que Jesus não queria vê-la chorar, para que ela se acalmasse.

Ao lembra-se de tudo aquilo novamente, que acontecera há poucos meses, quase que uma lágrima escapou dos olhos. Ela se recompôs e olhou, agora ele já estava na fila do pão com margarina e leite, e isso lhe fizera lembrar que logo as outras mulheres chegariam. Então, a moça voltou aos afazeres administrativos e, gradativamente, foi colocando tudo em ordem.

A maioria dos papéis já estavam grampeados, e agora ela os colocava em pastas. Olhou para o relógio novamente: mais alguns minutos e o sinal soaria, e o barulho diminuiria com todas as crianças nas salas de aula. Era por isso que ela esperava. Quando sinal finalmente tocou, ela já estava arquivando tudo. As crianças saíram do pátio, e agora o barulho era menor, mas ainda intenso.

A moça terminava as últimas coisas quando ouviu uma voz que era conhecida, virou-se para a porta, lá estava o menino. Sorriso singelo, gel no cabelo perfeitamente penteado e um pouco de vergonha estampada no rostinho. Ele esquecera o estojo e perguntava se havia algum ali que pudesse ser emprestado.

- Claro! – ela respondeu com um sorriso.

Na última prateleira de um armário costumava ficar alguns estojos e materiais de precaução, caso algum aluno precisasse de última hora, como era aquele caso. Ela tomou um estojo de pano, com fundo roxo e cheio de pequenos desenhos de dinossauros verdes e infantis, e levou-o para o garoto, que aguardava paciente na janela.

Ele agradeceu com um “obigado” e tomou o rumo de volta. Ela observava a graciosidade dele, lembrando-se ainda do episódio de meses atrás, quando um barulho muito forte fez a moça saltar de susto: uma pasta havia caído no chão.

Ela tomou a pasta e a colocou no devido lugar. Foi entre ela abaixar-se para pegar a pasta e coloca-la no lugar, um silêncio sepulcral pairou em todo o ambiente, como um silêncio das madrugadas. O som das vozes, gritarias e farras das crianças foi silenciado em menos de um segundo.

A moça sentiu-se ameaçada e, a passos lentos, aproximou-se da janela. Todas as salas estavam com portas fechadas, e o pátio vazio. Ela olhou por todos os lados, um medo estranho e familiar parecia lhe subir pelo corpo, agarra-lhe no pescoço e não deixa-la respirar. Ela ficava mais ofegante a cada segundo.

No centro do pátio havia algo no chão que, de onde estava, a moça não conseguia enxergar o que era. Numa atitude de coragem, ela decidiu sair e ver o que era.

Ela saiu da pequena secretaria. O silêncio que reinava no lugar agora parecia pesar sobre os seus ombros. Seus passos fortes ecoavam enquanto, com bastante cuidado, se aproximava daquele objeto deixado no chão e que, de alguma maneira, ela acreditava que seria a resposta de sua dúvida e de todo aquele silencio que lhe causava um turbilhão por dentro. A cada passo seu medo aumentava, enquanto, pouco a pouco, ela entendia o que era aquilo.

Uma camisa, um shorts, tênis, meia... um uniforme infantil, caído ali no meio do saguão. A moça tomou a roupinha em suas mãos, e havia algo entre aquele uniforme: um estojo de pano, de fundo roxo, com alguns dinossauros verdes e infantis. Ao ver aquilo, ela ficou paralisada no meio do saguão.

De repente, voltou a si com um grito que ecoou de dentro da sala de aula em frente de si. A porta abriu-se, e uma professora saiu de lá gritando de horror, aos prantos, com várias roupinhas nas mãos. Desesperada, ela apenas gritava e perguntava:

- Onde estão? Todos eles? Onde estão? Estavam aqui, cadê eles?

Outras portas abriram-se. Outras professoras saíram. Algumas gritavam desesperadas, como a primeira, outras apenas tremiam e repetiam frases pra si mesmas. Todas as crianças haviam sumido num segundo, num piscar de olhos, deixando suas roupinhas, materiais... tudo!

A moça, que estava no centro do pátio e de todo aquele pânico, segurava o estojo nas mãos, tremia de medo e não conseguia dizer nada, apenas andava pra trás e olhava para aquele estojo. Era verdade! Aquilo que sempre lhe diziam, aquilo que muito ouvira, de pessoas sumindo e crianças sendo retiradas da Terra para o fim do mundo.

Agora encostada na parede, e sentada no chão, uma multidão de pensamentos passavam pela cabeça e lhe davam mais medo ainda. O que vai ser agora? Por que não acreditou quando tinha tempo? Agora era tarde demais? Era tarde demais! Tarde demais! Não há mais o que fazer, tarde demais!

Sem perceber, era isso o que moça gritava, sentada no chão e com um estojo infantil nas mãos: é tarde demais!! Tarde demais!!

Aquelas palavras faziam eco dentro de sua cabeça. Ela abriu os olhos, coração acelerado. O quarto era o mesmo, escuro e cheio de fotografias por todos os lados. Sua cabeça doía. Ela sentou-se e olhou para o relógio. Ainda era muito cedo. O seu lado estava vazio. Onde estaria seu marido?

Por um momento, aquele temor se aproximou dela, porém com força bem inferior. Ela levantou-se e aproximou-se da porta, abriu-a. Os degraus da escada pareciam se misturar em sua visão turva, e aquela enxaqueca a martelar lhe a cabeça. Por um instante ela pôde ouvir o mexer de utensílios, talvez uma xícara, uma colher, e parecia ter algo no fogo.

- Querido? Você está aí em baixo? – ela perguntou com uma voz sonolenta. Pareceu passar toda uma eternidade, até que ela ouviu a voz que vinha debaixo.

- Estou assim. Volte a deitar, amor, já estou subindo.

- Não, não. Acho melhor eu tomar um banho. – ela replicou aliviada.
A voz do marido lhe trouxe paz ao coração. Tudo estava bem.
Ester fechou a porta, voltou para o quarto, tomou sua roupa, uma toalha e foi para o banheiro da suíte. Ela ainda tremia de nervoso, mas o banho a ajudaria a despertar para o novo dia. Deixou as roupas dobradas em cima do vaso, como de costume, a toalha pendurou no box e ligou os chuveiros. Tirou o pijama, mas, a esse ponto, tarde demais para um banho.

Deus abençoe!!

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