Dias de Retiro - Capítulo VII (final): Acertando as Desavenças



            De cima da escada, Pedro desentupia uma calha. Nem chovera a noite, e a calha estava super entupida, mas tudo ele fazia com prazer. Duas salas pra lá, Pastor Ludovico, Dona Vera, Clarinha, Rick e Maikão estavam reunidos, numa reunião, digamos, bem quente.
            - Você envergonhou meu nome como pastor, o nome de sua mãe, seu irmão e, acima de tudo, Clarinha: o nome de Jesus.
            A garota chorava.
            - Desculpa pai, eu...
            - Não peça desculpas a mim, peça a Deus. Você vai ficar três meses sem participar de nenhuma atividade na Igreja e sem tomar Santa Ceia, até se consertar.
            - Até do teatro?! Tem apresentação mês que vem!
            - Até do teatro, que você gosta tanto.
            A menina saiu da sala chorando, atravessou o corredor, o pátio e foi chorar numa mesa bem longe de todos. Do corredor, Camila e Lorena puderam ter um pequeno vislumbre da sala, até que a porta fechou-se novamente.
             - Sabe, tô me sentindo meio culpada, como uma dedo duro.
            - Pelo amor de Deus, Camila, você foi nossa luz. Imagina se ninguém descobrisse isso?! Os dois iam fazer coisa errada às costas de todo mundo. Foi Deus que permitiu que você visse, você não foi fofoqueira. Fique tranquila.
            - Eu fico imaginando: e se o Rick não tivesse lá? Ia ser muito mais difícil explicar tudo pro pastor, né? Quero dizer, é mais fácil ele, que é irmão, explicar pro pai, que é pastor, do que a gente, que é só membro.
            - Entendi. Por isso eu tô falando, foi Deus que direcionou tudo.
            Do lado de dentro, Rick conversava com Dona Vera, tentando consolar uma mãe arrasada. E Maikão conversava com o pastor e explicava como descobrira tudo.
            - Jovens são jovens; eu dei uma dura mais firme nela do que dei no Mario porque é minha filha. Espero que ela coloque aquela cabecinha no lugar – Maikão deu um pequeno riso - Agora, diga-me Maikon: o que você queria conversar ontem?
            - Ah, pastor, pode deixar pra lá. Depois de tudo o que aconteceu, esse é o menor dos problemas.
            - Mas ainda é um problema. Pode falar, precisamos resolver isso, seja o que for.
            - Pode ser em particular?
            Ludovico pediu que Rick e dona Vera saíssem da sala, e eles saíram. Um sorriso cresceu no rosto de Rick ao ver Lorena se aproximar, mas foi embora ao notar que ela não vinha em sua direção.
            - Dona Vera, será que eu posso conversar um pouco com a Clarinha? Tentar ajudar.
            - Tudo bem, minha filha, vai lá.
A porta fechou-se, deixando o Maikão e o pastor a sós.
***
            Clarinha estava sentada com os pés no banco, e abraçava os joelhos. Já não chorava mais, mas de longe podia se ver no rosto da garota que ela tinha chorado. Estava de costas pra todo mundo.
            -Oi, Clarinha... posso me sentar aqui? – Lorena se aproximou devagar, a garota fez um “sim” com a cabeça, e ela sentou-se bem de frente. Era uma daquelas mesas de cimento, com quatro bancos, típicas de escola – o que aconteceu?
            - Ah, Lorena, eu vejo todo mundo na minha sala namorando, saindo... eu nunca. Muitos meninos já me chamaram, mas nunca fiz nada disso. Já fazia um tempo que o Mario tava falando comigo no Whatts... quando ele me chamou na primeira noite, eu fui. O que tem de tão errado nisso?
            - Clarinha, o que é namorar pra você?
            - Ah... é sair, abraçar, beijar...
            - Isso é o que as pessoas fazem, mas não é só isso, Clara. Namoro é sério. A gente não namora pra beijar e só, a gente namora pra conhecer a pessoa que a gente quer casar um dia, mais pra frente, e formar família. Namoro é pra decidir a pessoa que a gente vai passar a vida toda junto. É muito sério!
            - Então é errado ficar? Tipo, sair só pra beijar?
- Sim. Olha, a própria Bíblia diz que a gente até pode fazer tudo, mas nem tudo deve ser feito. Como seu pai mesmo diz, “tudo me é lícito, mas...”
- “nem tudo convém”, eu sei, ele disse isso hoje, na sala.
- Uhum. Sua santidade é perdida quando você “fica” com os outros.
- Mas eu não posso, então, namorar o Mario? Tipo, compromisso sério?
Lorena sorriu.
- Clarinha, você tem quatorze anos, você acha mesmo que sabe decidir já quem você ter ao seu lado pelo resto de sua vida?
- É... acho que não.
- Viu?! Espera o momento certo, Clara, e a pessoa certa também.
- Nossa, mas como vou saber que é a pessoa certa?  Como você soube?
- Ah, Clara... não tem uma fórmula.
- Mas como você soube que o Rick era o cara?
Lorena ficou sem graça, ainda mais com tudo o que vinha acontecendo.
- Ah... é difícil... bem, a gente tem que gostar primeiro, e depois ver se é uma pessoa de bem, uma pessoa que, acima de tudo, serve a Deus – Clarinha ouvia atentamente – E, depois, com o tempo de namoro, aí você começa a perceber que realmente gosta da pessoa, e começa a não conseguir imaginar mais seu futuro sem ela junto...
De repente, ao longe, Lorena viu Rick passando... ela precisava fazer algo.
- Obrigado, Lorena. Você me ajudou bastante!
As duas se abraçaram. Lorena deixou a menina só... talvez quem precisasse de conselhos agora fosse ela.
***
A manhã havia sido mais calma no último dia, o que era bom pra dona Vera, que ocupara parte do tempo repreendendo a filha. Agora, o almoço já havia terminado, e toda a mocidade estava na sala de vídeo. O palestrante do dia tinha um filme pra passar, e depois ia fazer uma discussão com todos.
Clarinha estava junto, já consolada e arrependida, os conselhos de Lorena a tinham ajudado; Lorena tentava se aproximar de Rick, mas não tinha dado certo. Até o momento. Quem prestasse atenção no ótimo filme que estava sendo passado não notava, mas quem reparasse na sala, veria muitos olhares trocados. Lorena pra Rick. Rick pra Mario. Mario pra Clarinha. Clarinha pro filme, tudo o que a garota queria era distrair-se e pensar mais nas coisas de Deus. “Esse negócio de namoro dá trabalho”.
Quando o filme e a pequena discussão acabaram e cada um foi pra seu quarto, Lorena puxou Camila pelo braço.
***
- Ai, amiga, vai lá... fala com ele!
Lorena havia explicado toda a situação pra amiga.
- Mas vou falar o que, Camila? Não faço ideia.
- Lorena, diga o que você já devia ter dito: peça desculpas!
- Mas nem sei se a culpa foi minha. A gente tá distante um do outro e ele nem veio falar comigo em particular, ele também não me procurou.
- Lorena, para. Para de dar desculpas pra si mesmo, amiga. Você sabe que nessa história você errou.
Camila tinha sido direta. Lorena parou de roer a unha, levantou-se do colchão, que estava no chão do quarto, e saiu. Bateu de sala em sala, mas nada de Rick, foi até a cozinha e nada. “Talvez ele esteja no banheiro”, mas Maikão tirou suas esperanças.
- Tem ninguém aqui dentro não – disse o líder.
“Onde ele se meteu?” perguntava Lorena.
***
Dona Ivete passava o último pano no chão da cozinha quando o pastor Ludovico surgiu na porta.
- Dona Ivete, a senhora pode vir aqui por favor?
Ivete deixou tudo onde estava e seguiu o pastor até uma sala. Lá dentro, sentado numa cadeira de aluno, Maikão aguardava.
***
- Vir aqui e assistir o filme todo mundo vem, mas quem vem me ajudar a arrumar essas coisas? N-i-n-g-u-é-m! Até Maikão... até o líder deu linha... – Rick resmungava. De repente, ele viu a porta atrás de si abrir-se e fechar-se. Alguém tinha entrado – ah.. muito bem, alguém pra me ajud...
Rick encarou Lorena.
***
- O que está acontecendo aqui?
- Dona Ivete, se acalme. O Maikon me procurou dizendo que a senhora andou ligando pros pais dos jovens da mocidade, falando mal do retiro. Isso é verdade?
- O que?! Eu não acredito que o senhor vai acreditar na fofoca desse moleque.
- Moleque não...
- Maikon, sente-se! – o pastor não precisou falar duas vezes, o líder sentou-se – dona Ivete, apenas me responda: sim ou não?
Dona Ivete encarou Maikão.
- Sim, eu liguei. Liguei mesmo. E sabe por que, pastor? Porque o senhor tirou o Eduardo da liderança da mocidade, pra pôr esse aí – ela apontou pro rapaz, ainda sentado e surpreso – Meu filho era muito melhor. Meu filho era líder de verdade. Agora esse moleque aí, com esses bonés e skates, só porque tá “fazendo” um retiro ainda vai sair de queridinho de todo mundo.
Embora dona Ivete tivesse gritado o tempo todo, pastor Ludovico não disse nada, nem se surpreendeu. É verdade que Maikão ficou um tanto que chateado com o pastor, “ele não vai me defender?” pensava, mas o pastor disse, com voz calma.
- Pois muito bem, já que estamos apenas nós três aqui, o Maikon é líder da mocidade e a senhora mãe do Eduardo, creio que não tenha problema eu falar. Eu não tirei o Eduardo da liderança da mocidade, ele pediu pra sair. Ele estava muito afastado de mim, como se escondesse alguma coisa, e um dia eu o chamei no meu gabinete pra conversar; e lá, apenas pra mim, ele confessou... bem, ele confessou que dormiu com a namorada, a Regina.
            Dona Ivete ficou atônita e sentou-se.
- Ele pediu que eu não contasse pra mais ninguém, e eu jamais o exporia. Ele não estava bem e pediu pra sair. Por isso o Maikon assumiu a liderança, dona Ivete, porque eu vi nele, que a senhora insiste em chamar de moleque, o mesmo amor pela Igreja e a sabedoria do Espírito Santo que via no Eduardo; e que ele mesmo cedeu pro pecado.
Dona Ivete, com as mãos no rosto, não tinha reação. Algumas lágrimas rolaram de seu rosto enquanto ela pensava em tudo isso que acabara de descobrir. Ela levantou-se e saiu.
***
- Me perdoa?
Rick ficou em silêncio. Lorena o olhava nos olhos.
- Olha, eu não queria deixar as coisas assim, acabei deixando que meu serviço ocupasse tempo demais, e deixei você de lado. Eu sabia disso e não queria admitir. Ah, Rick, eu errei, todo mundo erra, me desculpa. Eu não quero te trocar por emprego, eu te amo. Eu acho que descobri que um bom emprego qualquer pessoa dedicada consegue, mas conseguir a pessoa certa... aquela pra namorar, casar, ter filhos, dividir a vida... só consegue quem espera em Deus e, quando consegue, deve valorizar pra não perder... me perdoa.
- Você falou sério?
- Cada palavra.
- Até quando disse que me ama?
- Sim. Você é a pessoa de Deus pra mim, não quero te perder.
Rick a puxou pra perto de si, a abraçou e foi beija-la, quando Lorena interrompeu.
- Acho que beijos dão problemas por aqui.
- Lorena – ele sussurrava – por favor. Depois de uma declaração dessas, você não quer que eu te dê um beijo na testa, né?
Então ele a beijou.
A sala ao redor do casal pareceu rodar enquanto eles, abraçados, se beijavam. O clima era lindo, até Maikão abrir a porta. E fecha-la numa fração de segundos.
Do lado de fora, de costas pra porta, ele sorriu. Não fora visto, e não chamaria a atenção dessa vez, eles eram uma exceção. Precisavam desse momento a sós.
***
O culto estava uma maravilha! Um louvor muito bonito, a Igreja reunida para o último dia de retiro, e a palavra ministrada havia sido uma bênção. Quando Maikão chamou uma pessoa diferente para vir à frente.
- Gostaria de pedir perdão aos meus pais pelo meu erro – dizia Clarinha - Sei que estava errada e não quero repetir, mas vou me consertar. Me desculpe pai, mãe e Rick.
O pastor e a esposa foram à frente, e abraçaram a filha aos prantos. Muitos da Igreja se emocionaram, e há aqueles que dizem ter visto uma lágrima rolar dos olhos de Rick.
- Mas isso não é tudo. Gostaríamos de agradecer a todos os que nos ajudaram, às mulheres da cozinha, lideradas pela dona Vera, à dona Ivete, responsável pela limpeza - por incrível que pareça, dona Ivete estava no culto final, o único que participara – e a um grande ajudador: Pedro.
O moço ficou corado e foi à frente com os outros.
- Oxe! Eu?!
- Sim, você ajudou bastante todos nós, vai ganhar um mimo também, e que Deus abençoe a vida de cada um de vocês.
Toda Igreja orou abençoando, e Pedro se sentiu “o cara”. Logo após o culto ser encerrado, e todo mundo sair pra pegar suas coisas, dona Ivete procurou Maikão.
- Me desculpe se faltei ao respeito com você. Creio que posso ter sido mal educada.
- Tudo bem, dona Ivete, fica tranquila.
***
No fim é assim: aquela correria! Gente esquecendo coisa, gente esquecendo gente, mala por cima de mala e todo mundo desesperado. Às vezes dá pra se ouvir um pai gritar “vamos logo, amanhã eu trabalho” ou um filho comentar “amanhã não tenho aula, yeah”.
Por fim, ficou apenas Maikão, Camila, Lorena, Pedro e Rick. Sentados na escada de frente com a porta de entrada.
- É, e no fim tudo deu certo.
- Sim.
- Mas ano que vem... nada de retiro -  comentou Maikão.
 - O que?! – o grupo exclamou.
- Olhem só gente: no final deu tudo certo, mas quanta coisa aconteceu! Gente sabotando, jovens se encontrando, comida que atrasa, chuveiro que não tem, calha que entope, mano, nem choveu direito! Meu Deus, se eu fosse um bom líder, nada disso teria acontecido.
- Meu... nada a ver! Maikão, é exatamente por isso que você é um bom líder de mocidade – Rick disse – porque outro, no meio de tanta dificuldade, teria parado. Você fez chegar ao fim e com sucesso.
- Você acha?!
- Claro, Maikão – disse Lorena – é na dificuldade que Deus nos prova, e nos faz vencer.
Maikão riu tímido.
- Viu amor?! Agora tira esse pensamento tonto da cabeça.
- Mas, vamos embora né? – sugeriu Rick.
Todo mundo foi entrando no velho fusca, deixando Maikão por último. O moço trancou a escola e pensou: “quem sabe ano que vem a gente não volta?”.
Maikão subiu no carro.
- Valian, só eu sozinho. Preciso arrumar uma namorada!
Os cinco riram, e o fusquinha (barulhento!!!) subiu a rua. Aquela era uma linda noite!

Deus abençoe!!

Comentários