De cima da escada, Pedro desentupia uma calha. Nem
chovera a noite, e a calha estava super entupida, mas tudo ele fazia com
prazer. Duas salas pra lá, Pastor Ludovico, Dona Vera, Clarinha, Rick e Maikão
estavam reunidos, numa reunião, digamos, bem quente.
- Você envergonhou meu nome como pastor, o nome de sua
mãe, seu irmão e, acima de tudo, Clarinha: o nome de Jesus.
A garota chorava.
- Desculpa pai, eu...
- Não peça desculpas a mim, peça a Deus. Você vai ficar
três meses sem participar de nenhuma atividade na Igreja e sem tomar Santa
Ceia, até se consertar.
- Até do teatro?! Tem apresentação mês que vem!
- Até do teatro, que você gosta tanto.
A menina saiu da sala chorando, atravessou o corredor, o
pátio e foi chorar numa mesa bem longe de todos. Do corredor, Camila e Lorena
puderam ter um pequeno vislumbre da sala, até que a porta fechou-se novamente.
- Sabe, tô me
sentindo meio culpada, como uma dedo duro.
- Pelo amor de Deus, Camila, você foi nossa luz. Imagina
se ninguém descobrisse isso?! Os dois iam fazer coisa errada às costas de todo
mundo. Foi Deus que permitiu que você visse, você não foi fofoqueira. Fique
tranquila.
- Eu fico imaginando: e se o Rick não tivesse lá? Ia ser
muito mais difícil explicar tudo pro pastor, né? Quero dizer, é mais fácil ele,
que é irmão, explicar pro pai, que é pastor, do que a gente, que é só membro.
- Entendi. Por isso eu tô falando, foi Deus que
direcionou tudo.
Do lado de dentro, Rick conversava com Dona Vera,
tentando consolar uma mãe arrasada. E Maikão conversava com o pastor e
explicava como descobrira tudo.
- Jovens são jovens; eu dei uma dura mais firme nela do
que dei no Mario porque é minha filha. Espero que ela coloque aquela cabecinha
no lugar – Maikão deu um pequeno riso - Agora, diga-me Maikon: o que você
queria conversar ontem?
- Ah, pastor, pode deixar pra lá. Depois de tudo o que
aconteceu, esse é o menor dos problemas.
- Mas ainda é um problema. Pode falar, precisamos
resolver isso, seja o que for.
- Pode ser em particular?
Ludovico pediu que Rick e dona Vera saíssem da sala, e
eles saíram. Um sorriso cresceu no rosto de Rick ao ver Lorena se aproximar,
mas foi embora ao notar que ela não vinha em sua direção.
- Dona Vera, será que eu posso conversar um pouco com a
Clarinha? Tentar ajudar.
- Tudo bem, minha filha, vai lá.
A
porta fechou-se, deixando o Maikão e o pastor a sós.
***
Clarinha estava sentada com os pés no banco, e abraçava
os joelhos. Já não chorava mais, mas de longe podia se ver no rosto da garota
que ela tinha chorado. Estava de costas pra todo mundo.
-Oi, Clarinha... posso me sentar aqui? – Lorena se
aproximou devagar, a garota fez um “sim” com a cabeça, e ela sentou-se bem de
frente. Era uma daquelas mesas de cimento, com quatro bancos, típicas de escola
– o que aconteceu?
- Ah, Lorena, eu vejo todo mundo na minha sala namorando,
saindo... eu nunca. Muitos meninos já me chamaram, mas nunca fiz nada disso. Já
fazia um tempo que o Mario tava falando comigo no Whatts... quando ele me
chamou na primeira noite, eu fui. O que tem de tão errado nisso?
- Clarinha, o que é namorar pra você?
- Ah... é sair, abraçar, beijar...
- Isso é o que as pessoas fazem, mas não é só isso,
Clara. Namoro é sério. A gente não namora pra beijar e só, a gente namora pra
conhecer a pessoa que a gente quer casar um dia, mais pra frente, e formar
família. Namoro é pra decidir a pessoa que a gente vai passar a vida toda
junto. É muito sério!
- Então é errado ficar? Tipo, sair só pra beijar?
-
Sim. Olha, a própria Bíblia diz que a gente até pode fazer tudo, mas nem tudo
deve ser feito. Como seu pai mesmo diz, “tudo
me é lícito, mas...”
-
“nem tudo convém”, eu sei, ele disse
isso hoje, na sala.
-
Uhum. Sua santidade é perdida quando você “fica” com os outros.
-
Mas eu não posso, então, namorar o Mario? Tipo, compromisso sério?
Lorena sorriu.
Lorena sorriu.
-
Clarinha, você tem quatorze anos, você acha mesmo que sabe decidir já quem você
ter ao seu lado pelo resto de sua vida?
-
É... acho que não.
-
Viu?! Espera o momento certo, Clara, e a pessoa certa também.
-
Nossa, mas como vou saber que é a pessoa certa? Como você soube?
-
Ah, Clara... não tem uma fórmula.
-
Mas como você soube que o Rick era o cara?
Lorena
ficou sem graça, ainda mais com tudo o que vinha acontecendo.
-
Ah... é difícil... bem, a gente tem que gostar primeiro, e depois ver se é uma
pessoa de bem, uma pessoa que, acima de tudo, serve a Deus – Clarinha ouvia
atentamente – E, depois, com o tempo de namoro, aí você começa a perceber que
realmente gosta da pessoa, e começa a não conseguir imaginar mais seu futuro
sem ela junto...
De
repente, ao longe, Lorena viu Rick passando... ela precisava fazer algo.
-
Obrigado, Lorena. Você me ajudou bastante!
As
duas se abraçaram. Lorena deixou a menina só... talvez quem precisasse de
conselhos agora fosse ela.
***
A
manhã havia sido mais calma no último dia, o que era bom pra dona Vera, que
ocupara parte do tempo repreendendo a filha. Agora, o almoço já havia
terminado, e toda a mocidade estava na sala de vídeo. O palestrante do dia
tinha um filme pra passar, e depois ia fazer uma discussão com todos.
Clarinha
estava junto, já consolada e arrependida, os conselhos de Lorena a tinham
ajudado; Lorena tentava se aproximar de Rick, mas não tinha dado certo. Até o
momento. Quem prestasse atenção no ótimo filme que estava sendo passado não
notava, mas quem reparasse na sala, veria muitos olhares trocados. Lorena pra
Rick. Rick pra Mario. Mario pra Clarinha. Clarinha pro filme, tudo o que a
garota queria era distrair-se e pensar mais nas coisas de Deus. “Esse negócio
de namoro dá trabalho”.
Quando
o filme e a pequena discussão acabaram e cada um foi pra seu quarto, Lorena
puxou Camila pelo braço.
***
-
Ai, amiga, vai lá... fala com ele!
Lorena
havia explicado toda a situação pra amiga.
-
Mas vou falar o que, Camila? Não faço ideia.
-
Lorena, diga o que você já devia ter dito: peça desculpas!
-
Mas nem sei se a culpa foi minha. A gente tá distante um do outro e ele nem
veio falar comigo em particular, ele também não me procurou.
-
Lorena, para. Para de dar desculpas pra si mesmo, amiga. Você sabe que nessa
história você errou.
Camila
tinha sido direta. Lorena parou de roer a unha, levantou-se do colchão, que
estava no chão do quarto, e saiu. Bateu de sala em sala, mas nada de Rick, foi
até a cozinha e nada. “Talvez ele esteja no banheiro”, mas Maikão tirou suas
esperanças.
-
Tem ninguém aqui dentro não – disse o líder.
“Onde
ele se meteu?” perguntava Lorena.
***
Dona
Ivete passava o último pano no chão da cozinha quando o pastor Ludovico surgiu
na porta.
-
Dona Ivete, a senhora pode vir aqui por favor?
Ivete
deixou tudo onde estava e seguiu o pastor até uma sala. Lá dentro, sentado numa
cadeira de aluno, Maikão aguardava.
***
-
Vir aqui e assistir o filme todo mundo vem, mas quem vem me ajudar a arrumar
essas coisas? N-i-n-g-u-é-m! Até Maikão... até o líder deu linha... – Rick
resmungava. De repente, ele viu a porta atrás de si abrir-se e fechar-se.
Alguém tinha entrado – ah.. muito bem, alguém pra me ajud...
Rick
encarou Lorena.
***
-
O que está acontecendo aqui?
-
Dona Ivete, se acalme. O Maikon me procurou dizendo que a senhora andou ligando
pros pais dos jovens da mocidade, falando mal do retiro. Isso é verdade?
-
O que?! Eu não acredito que o senhor vai acreditar na fofoca desse moleque.
-
Moleque não...
-
Maikon, sente-se! – o pastor não precisou falar duas vezes, o líder sentou-se –
dona Ivete, apenas me responda: sim ou não?
Dona
Ivete encarou Maikão.
-
Sim, eu liguei. Liguei mesmo. E sabe por que, pastor? Porque o senhor tirou o
Eduardo da liderança da mocidade, pra pôr esse aí – ela apontou pro rapaz,
ainda sentado e surpreso – Meu filho era muito melhor. Meu filho era líder de
verdade. Agora esse moleque aí, com esses bonés e skates, só porque tá
“fazendo” um retiro ainda vai sair de queridinho de todo mundo.
Embora
dona Ivete tivesse gritado o tempo todo, pastor Ludovico não disse nada, nem se
surpreendeu. É verdade que Maikão ficou um tanto que chateado com o pastor,
“ele não vai me defender?” pensava, mas o pastor disse, com voz calma.
-
Pois muito bem, já que estamos apenas nós três aqui, o Maikon é líder da
mocidade e a senhora mãe do Eduardo, creio que não tenha problema eu falar. Eu
não tirei o Eduardo da liderança da mocidade, ele pediu pra sair. Ele estava muito
afastado de mim, como se escondesse alguma coisa, e um dia eu o chamei no meu
gabinete pra conversar; e lá, apenas pra mim, ele confessou... bem, ele
confessou que dormiu com a namorada, a Regina.
Dona Ivete ficou atônita e sentou-se.
-
Ele pediu que eu não contasse pra mais ninguém, e eu jamais o exporia. Ele não
estava bem e pediu pra sair. Por isso o Maikon assumiu a liderança, dona Ivete,
porque eu vi nele, que a senhora insiste em chamar de moleque, o mesmo amor
pela Igreja e a sabedoria do Espírito Santo que via no Eduardo; e que ele mesmo
cedeu pro pecado.
Dona
Ivete, com as mãos no rosto, não tinha reação. Algumas lágrimas rolaram de seu
rosto enquanto ela pensava em tudo isso que acabara de descobrir. Ela
levantou-se e saiu.
***
-
Me perdoa?
Rick
ficou em silêncio. Lorena o olhava nos olhos.
-
Olha, eu não queria deixar as coisas assim, acabei deixando que meu serviço
ocupasse tempo demais, e deixei você de lado. Eu sabia disso e não queria
admitir. Ah, Rick, eu errei, todo mundo erra, me desculpa. Eu não quero te
trocar por emprego, eu te amo. Eu acho que descobri que um bom emprego qualquer
pessoa dedicada consegue, mas conseguir a pessoa certa... aquela pra namorar,
casar, ter filhos, dividir a vida... só consegue quem espera em Deus e, quando
consegue, deve valorizar pra não perder... me perdoa.
-
Você falou sério?
-
Cada palavra.
-
Até quando disse que me ama?
-
Sim. Você é a pessoa de Deus pra mim, não quero te perder.
Rick
a puxou pra perto de si, a abraçou e foi beija-la, quando Lorena interrompeu.
-
Acho que beijos dão problemas por aqui.
-
Lorena – ele sussurrava – por favor. Depois de uma declaração dessas, você não
quer que eu te dê um beijo na testa, né?
Então
ele a beijou.
A
sala ao redor do casal pareceu rodar enquanto eles, abraçados, se beijavam. O
clima era lindo, até Maikão abrir a porta. E fecha-la numa fração de segundos.
Do
lado de fora, de costas pra porta, ele sorriu. Não fora visto, e não chamaria a
atenção dessa vez, eles eram uma exceção. Precisavam desse momento a sós.
***
O
culto estava uma maravilha! Um louvor muito bonito, a Igreja reunida para o
último dia de retiro, e a palavra ministrada havia sido uma bênção. Quando
Maikão chamou uma pessoa diferente para vir à frente.
-
Gostaria de pedir perdão aos meus pais pelo meu erro – dizia Clarinha - Sei que
estava errada e não quero repetir, mas vou me consertar. Me desculpe pai, mãe e
Rick.
O
pastor e a esposa foram à frente, e abraçaram a filha aos prantos. Muitos da
Igreja se emocionaram, e há aqueles que dizem ter visto uma lágrima rolar dos
olhos de Rick.
-
Mas isso não é tudo. Gostaríamos de agradecer a todos os que nos ajudaram, às
mulheres da cozinha, lideradas pela dona Vera, à dona Ivete, responsável pela
limpeza - por incrível que pareça, dona Ivete estava no culto final, o único
que participara – e a um grande ajudador: Pedro.
O
moço ficou corado e foi à frente com os outros.
-
Oxe! Eu?!
-
Sim, você ajudou bastante todos nós, vai ganhar um mimo também, e que Deus
abençoe a vida de cada um de vocês.
Toda
Igreja orou abençoando, e Pedro se sentiu “o cara”. Logo após o culto ser
encerrado, e todo mundo sair pra pegar suas coisas, dona Ivete procurou Maikão.
-
Me desculpe se faltei ao respeito com você. Creio que posso ter sido mal
educada.
-
Tudo bem, dona Ivete, fica tranquila.
***
No
fim é assim: aquela correria! Gente esquecendo coisa, gente esquecendo gente, mala
por cima de mala e todo mundo desesperado. Às vezes dá pra se ouvir um pai
gritar “vamos logo, amanhã eu trabalho” ou um filho comentar “amanhã não tenho
aula, yeah”.
Por
fim, ficou apenas Maikão, Camila, Lorena, Pedro e Rick. Sentados na escada de
frente com a porta de entrada.
-
É, e no fim tudo deu certo.
-
Sim.
-
Mas ano que vem... nada de retiro -
comentou Maikão.
- O que?! – o grupo exclamou.
-
Olhem só gente: no final deu tudo certo, mas quanta coisa aconteceu! Gente
sabotando, jovens se encontrando, comida que atrasa, chuveiro que não tem,
calha que entope, mano, nem choveu direito! Meu Deus, se eu fosse um bom líder,
nada disso teria acontecido.
-
Meu... nada a ver! Maikão, é exatamente por isso que você é um bom líder de
mocidade – Rick disse – porque outro, no meio de tanta dificuldade, teria
parado. Você fez chegar ao fim e com sucesso.
-
Você acha?!
-
Claro, Maikão – disse Lorena – é na dificuldade que Deus nos prova, e nos faz
vencer.
Maikão riu tímido.
-
Viu amor?! Agora tira esse pensamento tonto da cabeça.
-
Mas, vamos embora né? – sugeriu Rick.
Todo
mundo foi entrando no velho fusca, deixando Maikão por último. O moço trancou a
escola e pensou: “quem sabe ano que vem a gente não volta?”.
Maikão
subiu no carro.
-
Valian, só eu sozinho. Preciso arrumar uma namorada!
Os
cinco riram, e o fusquinha (barulhento!!!) subiu a rua. Aquela era uma linda
noite!
Deus abençoe!!
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