Cantando ao Rei: Capítulo IV - Expectativas frustradas


A Igreja estava cheia aquele domingo à tarde. O coral estava reunido para ensaiar, além das mulheres que ainda decidiam que decoração seria ideal para uma cantata no glorioso (que de glorioso não tinha nada) Teatro Municipal. E, enquanto o coral já ensaiava e ensurdecia as senhorinhas (que de “inhas” não tinham nada) da decoração. Numa sala à parte, Rick e Lorena conversavam.
- E você aceitou?! – exclamou Lorena.
            - Sim, oras! Ele só pediu pro filho dele cantar com a gente, não é nada de mais – Rick se justificou.
            - Claro que é, Rick! Ele pediu pro Brian ser um dos principais. E se o menino cantar mal? E se ele for chato? Ele nem é daqui!! Por que você não pediu minha sugestão?
            - Desculpe Lorena, mas eu precisava tomar uma decisão na hora, e decidi salvar a cantata. Olha, se o Brian fosse chato, ele não estaria aqui ensaiando, estaria? E eu sei que – Rick não sabia de nada, mas precisava mostrar confiança – ele canta bem; muito bem.
            - NAM, PELA MORDIDEUS ESSE MININU CANTA RUIM DE MAIS DOIDO!!! –Pedro chegou, seguido de Camila. Ele nunca pedia licença para entrar.
            - Quanta conveniência! Eu aposto que isso é inveja!!
            - Inveja, Rick?! Vai ouvir então, o cara parece ter cabo de aço no lugar de corda vocal!
            Rick e Lorena se levantaram e foram até o saguão principal.
ATENÇÃO: as próximas linhas não são recomendadas para pessoas que tem bom ouvido musical, que apreciam a arte da música e... Enfim, leia quem quiser, mas não nos responsabilizamos pelos danos que venham a ser causados.
            Se você conseguisse pegar um gato, pisar em seu rabo, tirar seus pêlos e jogá-lo em um balde d’água, e se esse gato emitisse algum som, então você uniria o som desse gato ao de um carro velho (leia-se caindo aos pedaços) freando à altas velocidades, multiplicaria por quatro e teria uma ideia do que seria Brian cantando. Com a licença da palavra: era de doer.
            O coral sofria ao som da foz do moço; um dos cantores abriu os olhos (que estavam fechados numa expressão de constante dor) e viu Rick assistir a cena. Bastaram duas palavras e todo o coral olhou para o moço com rostos nada amigáveis, digamos. Rick, mais que depressa, voltou para a sala em que estava; antes de entrar poder ver uma ultima expressão: os olhos furiosos de Vinicius, o regente, ardendo, como se dissessem: precisamos conversar, mocinho!!
            Ele sentou-se na cadeira, apoiou os cotovelos na mesa e a cabeça nas mãos e disse:
            - Tem 40 pessoas aí fora querendo me matar!
            - Isso não é verdade Rick – disse Camila – você esqueceu de contar o Vinicius.
            - Camila, cala a boca! – repreendeu Lorena – Não fica assim Rick.
- É cara, vai dar tudo certo, tenho certeza – Pedro tentava animá-lo.
De repente o fez-se silêncio no salão principal e todos agradecerem sinceramente em seus corações por tamanho ato de bondade do Senhor. Pedro ainda tentava animar o amigo quando se ouviu um estrondo; ele e Camila foram ver o que havia acontecido, deixando Lorena e Rick novamente sozinhos.
- Vai ficar tudo bem, Rick.
- Não, Lorena, não vai. É sempre assim: eu com essa mania de dar a cara a tapa e fazer coisas que os outros não fazem. E sabem por que não fazem? Porque não dá certo!
- As coisas são assim, Rick, difíceis, não significa que não dará certo!
- São assim sim! Sempre foi assim comigo, como quando eu destruí o carro do prefeito, ou machuquei meu professor. Ou mesmo quando eu... – e eles se olharam nos olhos. Lorena sabia o que ele falaria, mesmo o rapaz não tendo terminado a frase. O turbilhão de sentimentos remexeu o interior da moça, enquanto Rick apenas abaixou a cabeça.
A esse ponto, Pedro e Camila já se aproximava da sala, e com más notícias.
- Então, Rick, parece que nosso amigo cantor derrubou o letreiro que tinha escrito “Feliz Natal”!
Rick levantou a cabeça.
- Ah, era tudo o que precisávamos. Maravilha! Não tem como melhorar!
Lorena levantou-se e saiu, foi pra fora, precisava tomar um ar. Rick fez sinal de querer acompanhá-la, mas Camila foi mais ágil. Seria melhor a companhia da amiga do que a dele, ainda mais depois do que ele quase dissera minutos antes.
***
Sentada em um banco da pracinha, Lorena chorava discretamente, e mesmo que não fosse discreta, não teria problemas. Afinal, se alguém visse e contasse aos outros, quem iria acreditar que a brava e forte Lorena estaria chorando num banco de praça qualquer? Quem seria o louco que diria nisso isso? Mas aquele não era um banco de uma praça qualquer e Lorena não era tão forte e brava quanto os outros pensavam.
Camila a seguiu da Igreja até a pracinha e, aos poucos foi se aproximando. Quando Lorena viu a amiga, pediu abraço com as mãos e as duas se abraçaram.
- Ah Camila, está tão difícil!
- O que está difícil amiga? – Camila perguntou ingênua.
Ela ainda estava abraçada em Lorena, quando, de repente, viu algo de estranho em uma árvore frente ao banco. Lá estava, gravado no casco da árvore, dentro de um coração: Lorena e Rick.
- Lorena?! Você viu aquilo que o Rick fez?! – ela apontava.
- Sim, Camila. Eu estava junto quando ele gravou isso na árvore.
Camila ficou boquiaberta. Nunca, em toda a sua vida, pensaria em algo assim. Bem, de fato, quem esperaria de Camila se quer pensasse?
Mas, voltando à história...
Lorena começou, então, a contar de seu passado. De como ela e Rick eram amigos na escola, desde muito tempo, se conheceram na terceira ou quarta série. Contou de como brincavam um na casa do outro e de como essa amizade foi crescendo ao longo dos anos, crescendo junto com eles, que se tornaram jovens e, de alguma forma, perceberam que tudo ia além de amizade, se é que vocês me entendem.
Mas nenhum dos dois sabia o que fazer para avançarem de uma grande amizade a um romance. Tinham medo e mentes confusas, eles era bem jovens. Ela não sabia se realmente gostava dele, ou se estava confundindo sentimentos; e jamais, de maneira nenhuma, estragaria uma amizade assim. Até uma tarde em que ele desenhou o coração na árvore, com seus nomes, e ela sorriu em resposta. Pronto! Era o sinal que ambos precisavam.
- Mas vocês ficaram juntos?! – Camila perguntou, ainda em choque com tantas informações.
- Não.
- O que aconteceu então?!
- Na semana seguinte daquele desenho, no último dia de aula do terceiro ano, eu desci as escadas da escola e lá estava ele no pátio: com um buquê de rosas na mão e alianças.
- Que lindo!!
- Lindo, Camila?! Ele estava me pedindo em casamento!
***
            - Não, ali... Eita, ta errado, ta vendo não! Aquele fio vermelho é ali... – Pedro “ajudava” Rick a “consertar” o letreiro.
            - Quer fazer??
            - Não, fique a vontade. Sabe, as meninas tão demorando, né? O coral já ensaiou, já estão vestindo as batas e nada delas.
            - Deixa as meninas pra lá, Pedro. Liga o letreiro e ore para acender!
            Pedro ligou, mas nada de acender. Foi nesse momento que Vinicius chegou, bem nervoso.
            - Olha Rick, assim não dá! Me desculpe, mas ta muito difícil seguir em frente desse jeito. Primeiro que já tava tudo certo e, de repente, você coloca esse cara aí que ninguém nunca viu e que canta mal; agora mais essa não dá.
            - Mas o que aconteceu, Vinicius?
            - Vai lá ver! As batas do coral estão todas com medidas erradas!
***
            - Meu Jesus! – exclamou Camila – e o que você fez?
            - Eu disse que não, claro!
            - Ali, na frente de toda a escola?
            - Sim! Se ele queria algo comigo tinha que me pedir em namoro, não em casamento; e outra, odeio essas “surpresas” em público. E depois disso, nunca mais nos falamos, nem uma palavra, nada! Até esse fim de ano. Ai, Camila, estou tão aflita! Às vezes pareço amá-lo, mas tenho medo de estar me confundindo, por isso sempre tento afastá-lo de mim. É tão complicado!
            - Não. Não é complicado, nós é que complicamos. Você gosta dele, Lara, e o que te impede de namorar? Nenhum dos tem compromisso. Seria complicado se vocês não se gostassem, mas se gostam!
            - Mas eu disse a ele que não nos aproximaríamos, para ele tirar isso da cabeça; e agora eu estou assim? Tenho medo de estar confundindo as coisas, de estar querendo viver um tempo que já passou e não volta mais e...
            - Lorena! Não seja boba. Você gosta dele.
            - Não é fácil assim, Camila. Ele não gosta mais de mim, tenho certeza. Perguntei a ele antes de começarmos os planejamentos e ele me garantiu!
            - Ou ele disse isso apenas pra te acalmar e não te perder do projeto. Lorena, eu acho que você deveria, no mínino, falar com ele e sair dessa aflição.
            Lorena daria mais um argumento senão começasse a pingar. Aquele realmente era um mês chuvoso, e o céu anunciava mais águas. Elas se levantaram e foram em direção da Igreja, Por pouco não são surpreendidas pela chuva, que em poucos minutos ficou forte e pesada.
            As duas esperavam que Rick tivesse se animado um pouco mais, porém, tudo o que viram foi o rapaz apagando as últimas luzes, trancando as últimas portas e fechando a Igreja para partir, no mesmo desanimo que elas o viram quando saíram. Ao ver as meninas chegando, Pedro logo foi ao encontro delas, contando as más novas.
            - Vamos embora? – Rick perguntou.
Todos concordaram, e em poucos minutos, já estavam subindo a rua dentro do Fusca do rapaz. O silêncio reinava por parte do pessoal, digo novamente: por parte do pessoal, porque não há Fusca silencioso, ainda mais um Fusca sendo dirigido loucamente durante uma tarde de densa chuva. Lorena decidiu falar algo para quebrar o clima ruim.
            - Bem, que dia 24 seja abençoado!
            - Dia 24?
            - É Camila, a apresentação vai ser dia 24. Por quê?
            - Bem... É que.... Sabe, dia 24 vai ter uma super liquidação no Shopping. Todo mundo vai estar lá e eu ia também...
            - O que?! Sério?! Na véspera de Natal?! – perguntou Rick.
            - É sério.
            - Ah, que maravilha. Agora as coisas estão realmente bem!
            - É só uma liquidação. Calma, Rick, vai... – Lorena tentava consola-lo quando foi interrompida.
            - Calma? Calma? Você ta brincando comigo né? Olha só a nossa situação!
            - Ah, e você ficar assim vai melhorar tudo?!
            E os dois começaram a discutir. Ele falava que tudo daria errado mesmo, e que ela nunca quisera ajudá-lo e que estava fazendo tudo de qualquer jeito, enquanto ela se justificava e dizia que a culpa era, claro, dele. Mas, numa discussão, nunca se ouve o que o outro fala (ainda mais quando a briga acontece dentro de um Fusca barulhento, sendo dirigido loucamente durante uma tarde de densa chuva). Pedro e Camila estavam com o coração na mão; temiam pelos dois, e por suas vidas afinal, não sei se disse aqui, mas Rick dirigia loucamente o Fusca.
            - Ah, é claro que você vai jogar a culpa em mim, Lorena.
- Cala a sua boca!
- Já era de se esperar isso de você.
            - Escuta, se o erro sou eu e eu faço as coisas erradas, por que você foi atrás de mim?
            - PORQUE EU GOSTO DE VOCÊ!
            Rick encostou o carro, deu um tapa no volante e abaixou a cabeça. Lorena não sabia se chorava de raiva ou de emoção; os sentimentos se misturavam dentro dela de uma maneira que ela não conseguiria explicar se quisesse. Pedro não via oportunidade melhor pra sair fora e deixar os dois sozinhos.
            - Cara, aqui ta perfeito. Eu e a Camila vamos descer. Obrigado!
            - Mas minha casa é na outra quadra!
            - VAMOS DESCER CAMILA!! Valeu Rick!
            Os dois saíram sem que Lorena precisasse descer. Nem ela e nem Rick sabiam o que dizer, nem mesmo se olhavam. Lorena apenas pediu para ser levada até casa, e assim ele fez. Ela desceu rápido do carro, para não apanhar chuva, e pôde ouvir o barulho forte do motor do Fusca saindo enquanto ela ainda abria a porta.
***
            Deitado na cama, com o travesseiro cobrindo o rosto, Rick não sabia o que pensar. Já havia cobrado soluções da mãe, para que ela refizesse as costuras, e ele já havia proposto se dedicar mais para consertar o letreiro; ele também conversara com Vinicius para ensaiar mais com Brian, embora houvesse pouco tempo.
            Mas não era nada disso que o perturbava, era ela. Os mesmos sentimentos, as mesmas sensações de antes o envolviam novamente: alegria, amor, esperança, misturados com a tristeza e a frustração que nasceram da rejeição que ele sofreu. A peça o preocupava, e muito, mas ela o entristecia. Ele ficava triste por ser rejeitado, e mais triste por ainda amar quem um dia o dissera não.
            Ele, então, não fazia nada. Apenas tirou o travesseiro do rosto e via a chuva deslizar pela janela. Como se, atrás dela, Lorena estivesse esperando por ele, sorrindo.
***

            Lorena não falou com os pais, nem mesmo anunciou que tinha chegado; foi direto ao quarto. Jogou-se no pufe cor-de-rosa e ficou observando a janela. As gotas de chuva escorriam no grande vidro, e faziam aquelas sombras engraças por todo o quarto. Ela parecia não pensar em nada, e estar em paz; ela queria não pensar em nada e estar em paz, mas tudo o que vinha em sua mente era o rosto dele; e ele sorria.


Deus abençoe!!

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