“Vê, os cravos nas mãos, Seu corpo
a sofrer, naqueles momentos de dor. Vê, o Mestre a chorar, e foi por você que
Ele mostrou tanto amor...”
O
piano era tocado lindamente pela Dona Dolores, uma senhora de mais de setenta
anos que tocara o instrumento a vida toda, enquanto o coral canta sob a paciente
regência de Vinicius. Com as mãos levantadas, ele conduzia a todos, até que
pediu que parassem a canção ali mesmo, no meio, pra acertar um ou outro ou
muitos que estava desafinando.
-
Bravo! Bravo! – Flavinha aplaudia e falava, entrando no templo e indo em
direção ao púlpito - Oh! Uau! Vocês são
o melhor coral da região, sem dúvidas! – antes que Vinicius pudesse agradecer, Flavinha
já engatilhou – vocês estão ensaiando pra alguma apresentação especial? Alguma
coisa que eu não saiba??
-
Bom, a gen....
-
Hahaha... – Pedro já veio, saindo do meio do coral e interrompendo a conversa –
desculpa, Vinicius, não querendo ser abiudo pra dar pitaco, mas já sendo, essa
garota tá é doida. Todo ano tem cantata de Páscoa, bichinha, tu nunca assistiu
não?!
-
Olha aqui, bonito – Flavinha e sua mania de chamar os outros de bonito e bonita
– em primeiro lugar eu tô na Igreja a menos de um ano, pra sua informação; e em
segundo lugar, o pastor Suvorico me garantiu que a cantata seria cancelada, tá?
-
É Ludovico! – Vinicius corrigiu.
-
O que?! Hahaha até parece que o pastor LUDOVICO e falar algo assim. Ainda mais
pra tu... aliás, quem é tu mesmo?
-
Flávia, e o prazer é todo seu!
-
Abusada!
-
Oh, por favor, parem vocês dois! – Vinicius interrompeu – Pedro, volta pro
coral – o rapaz afastou-se um pouquinho, e Vinicius prosseguiu - Flávia, não
sei por qual motivo o pastor diria algo assim pra você, se é que ele realmente
disse, mas a Cantata não foi cancelada. A gente tá ensaiando exatamente pra
apresentar nesse domingo.
-
Hm... então tem alguma coisa errada.
-
Tem mesmo, tu invadir nosso ensaio pra falar essas asneiras - Pedro voltou.
-
Ai, bonito, você nem tá mais na conversa, sai fora, eu hein...
E
os dois voltaram a discutir. Dona Dolores achou aquilo um absurdo, onde já se
viu dois jovens brigando assim dentro da Igreja! Alguns do coral riam da
discussão, outros riam da vermelhidão que subia no rosto de Vinicius quando ele
ficava bravo. Ele já estava uma pimenta.
-
CHEGA! – os dois pararam – Pedro, volta pro coral, na marcação. Flávia, olha,
por favor, não interrompa mais nosso ensaio!
-
Ai, desculpa moço, mas é verdade. O pastor me garantiu que a cantata seria
cancelada, ele até me disse que ia conversar com o tal do Rick...
De
repente, a expressão de todo o coral mudou. Até Dona Dolores colocou a mão na
testa e fez cara de preocupação.
-
Se tratando do Rick... – Vinicius falou.
Num
instante, todo o coral explodiu em falatórios e nervosismo. Vinicius não
conseguia conter sozinho toda aquela gente gritando e mexendo os braços.
-
Quer saber de uma coisa? – Pedro disse, todos fizeram silêncio – vamos tirar a
satisfação agora mesmo!
“YEAH”
o coral gritou e seguiu o rapaz, ignorando totalmente o regente que tentavam
acalma-los e segurar alguns. Num piscar de olhos, no grande salão de culto,
sobraram apenas Vinicius, que olhava bravo a Flavinha, e Flavinha, que respondia
com um sorriso amarelo.
O
coral saiu pela porta lateral da Igreja, que dava num corredor estreito e
levava aos fundos, onde havia um pequeno pátio cheio de materiais de reformas,
sacos de cimento, betoneiras e essas coisas. O pátio ligava várias portas: à
porta dos banheiros, das salas de ensino das crianças, dos jovens, à cozinha.
Em
cima das salas haviam mais duas portas que eram ligadas por um tipo de varanda:
a segunda porta dava no gabinete do pastor; a primeira, dava na sala de
reuniões, onde geralmente o Conselho se reunia, e onde todos queriam chegar.
Camila
descia as escadas cantarolando quando quase foi atropelada pelo coral que
avançava feito uma tropa em guerra.
-
Hei, hei! Parem! – ela disse, erguendo as mãos. Todos pararam – o que vocês
estão fazendo?!
-
Não nos interrompa, Camila, temos um assunto sério a resolver! – Pedro liderava
o bando.
-
Ai, mas eu não iria lá resolver agora... eles não estavam num momento muito
bom.
-
Então vai ficar menos bom ainda.
-
Ai, mas eu não iria lá se fosse vocês...
-
Mas a gente vai...
-
Eu não iria...
-
MAS A GENTE VAI!
Era
engraçado ver de cima Camila sendo quase que esmagada no meio da escada por
aquele mundo de gente subindo nervosa.
De
repente, ao darem de frente com a porta, todos se espremeram na varandinha;
como que se tivessem perdido a coragem naquele segundo. Pedro olhou pra eles,
fez uma cara de “é agora ou nunca” e abriu a porta.
Era
uma sala grande e retangular, com uma mesa redonda de dez lugares, uma lousa branca
grande para anotações [daquelas que se escreve com caneta], que também era
usada para as projeções do Datashow.
Na
lousa, havia um grande desenho de cruz, as cadeiras estava todas dispersas, e
muitos papéis jogados sobre a mesa. Sentados praticamente de frente, um pro
outro e ambos de lado pra porta, lá estavam: Rick e Lorena. Adivinhem: eles
estavam discutindo.
-
Deixa de ser brega, Rick, pelo amor de Deus...
-
Lorena, você não tá entendendo: colocar uma cruz enorme atrás do coral vai
deixar o cenário muito mais lindo!!
-
O que?! Vai ficar ridículo....
Eles
continuaram brigando até perceberem que o coral havia entrado e tomado toda a
sala ao redor deles. Rick e Lorena se entreolharam.
-
Oi?! – Rick disse. Bastou pra todos começarem em seus argumentos. Quase nada
dava pra se ouvir, até que Lorena fez sinal de silêncio.
-
Gente, pelo amor de Deus... o que tá acontecendo?!
-
Tá acontecendo, Lorena, que o pastor vai cancelar a cantata e ninguém foi
avisado... oxi! E a gente ensaiando há tanto tempo!
-
O que?! Pedro, você bateu a cabeça de novo?
-
É sério... bem, a Flávia que disse.
-
Ah tá, e vocês vão acreditar no que a Flavinha diz?
-
Hei! – a moça exclamou, saindo do meu do povo – não vem me desmoralizar não,
bonita. O pastor me garantiu mesmo isso.
-
Sei, “bonita”, e por que ele faria isso?
-
Ora, pra poder realizar o DIP.
-
Realizar o que?! Olha, minha filha, não sei o que você comeu hoje, mas te fez
mal. Se caso o pastor quisesse cancelar a cantata, ele teria falado comigo ou
com o Rick.
-
Mas ele disse que falou com o Rick!
-
Nesse caso, o Rick teria nos dito, não é? – Lorena disse, voltando-se pro
namorado.
Todos
olharam pra cara de Rick, que estava com um daqueles sorrisos malandros na
cara. Ele nem precisou dizer nada.
-
Gente, com licença que eu só vou MATAR meu namorado.
Lorena
voou pra cima de Rick com murros.
-
Calma... ai... é que já faz tempo... au... meu pai falou comigo... ai... faz
umas três semanas e depois não falou mais nada... ai... eu tô falando sério –
Lorena parou – Ele não disse mais nada, achei que ele tivesse desistido de
cancelar.
-
Tá, e a gente faz como?!
Bastou
Pedro perguntar pro Coral começar de novo.
-
Gente... silêncio.. GENTE, SILÊNCIO!!!! – Rick ordenou – eu e a Lorena – Lorena
deu apenas um grunhido – vamos ver com o pastor. Vocês continuem ensaiando.
Flavinha
pareceu não gostar muito.
***
-
Clarinha! Que coisa mais feia ficar ouvindo a conversa dos outros pela porta! -
Dona Vera, que acabara de chegar em casa, surpreendia a filha com o ouvido
grudado na porta.
-
Ai mãe, desculpa, mas é caso de vida ou morte. O Rick e a Lorena chegaram aqui
falando que o pai vai cancelar a cantata de Páscoa e eu quero ouvir o que eles
estão conversando.
-
Você ficou maluca, garota?! – Vera tirava a filha da porta – seu pai nunca
faria uma coisa dessas!
-
Mãe, tô falando sério. Tipo, eu não acho justo, bem nessa cantata que o teatro
vai ajudar. A gente deu duro ensaiando!
Dona
Vera ainda desconfiava, mas resolveu tirar a prova.
-
Mãe! Que coisa feia, ouvindo a conversa pela porta?!
-
Fique quieta garota, sou sua mãe.
De
repente, a porta abriu-se, e pastor Ludovico surpreendeu a esposa na espreita.
-
Que história é essa de cancelar a cantata??
-
Oh, pelo amor de Deus vou ter que explicar pra você também? Nada mais vai ser
cancelado. Eu até pensei em cancelar pra poder realizar algo diferente mas não
vamos mais.
-
Mas pai – Rick interveio – precisamos fazer algo no DIP. É uma data importante!
-
DIP?! – dona Vera ainda estava perdida na conversa – o que é isso?? Do que
vocês estão falando?? Que história é essa??
Lorena,
então, explicou pra sogra sobre o DIP, o Domingo da Igreja Perseguida, onde as
Igrejas livres se unem em oração e conscientização sobre a Igreja perseguida ao
redor do mundo, enquanto Rick tentava convencer o pai.
-
Não, Rick! A Igreja está sob reformas... não teremos condições de bancar mais
nada!
-
Por favor!!! Por favor, pai, vamos..... deixa eu e a Lorena tentarmos convencer
o conselho!!! Vamos, deixa pai!!!!!
-
Olha pastor, eu adoraria – Lorena emendou – acho essa uma data muito
importante; e tem outra, quase ninguém lembra de orar pelos perseguidos.
O
pastor observava os dois, enquanto dona Vera o encarava, preocupada.
-
Então tá! Vamos ver o que vocês conseguem fazer.
Rick
e Lorena correram abraçar o pastor, animados.
***
- Já tô pensando no que a gente pode
fazer... vai ser demais! – Rick dizia, enquanto deixava Lorena na casa dela
[com aquele fusquinha barulhento].
- Vai sim! – ela respondeu sorrindo
– ai, preciso falar uma coisa séria com você!
Rick estacionou o carro [se é que
aquilo é carro] na frente da casa da namorada.
- Muito sério?! – Ele perguntou com
medo.
-
Bastante. Meu pai recebeu uma oferta de emprego em São Paulo, e com essa crise,
ele tá pensando em aceitar.
-
O que?! E aí vocês mudam pra lá? Mas você pode ficar aqui, né?
Lorena
fez uma cara de tristeza, e olhou nos olhos do namorado.
-
Eu não consigo me sustentar sozinha, amor, o aluguel pra cá é muito caro, você
sabe disso. Se eles forem, eu tenho que ir junto.
-
Mas e a gente?
-
A gente vai ter se contentar com a distância.
Rick
virou-se, inconformado.
-
Eu vou orar, e Deus vai dar uma resposta pra gente.
-
Amém!
Os
dois se abraçaram dentro do fusquinha.
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